Os negativos estavam na estante, ao lado dos textos de Apollinaire. O cheiro de serragem por toda parte, e o silêncio absurdo da rua só serviu de pretexto para nossa fuga. O velho barco, encalhado na margem do rio, lembrava a estranheza do destino. Como fomos parar aqui, pensando nessas coisas...? Eu não sabia o que mais estava por vir. O amor começava pela nuca, com os dedos cavalgando a pressa. Fitava as águas rumando para o mar, e me continha. Se era para ser assim, que fosse um pouco diferente. A dez dias para encenação, você não recorda algumas falas. As mais circunstanciais. As outras, extensas, surgem até nos sonhos sombrios da manhã de vanguarda, quando, envenenado pelo ídolo de pedra, só pensei em dizer que não me importo com seu cabelo azul. Quem sabe uma carta febril, que prometo há tanto tempo, conserte um pouco o dia.
sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008
domingo, 24 de fevereiro de 2008
Nos Subúrbios Da Alma
Muitas vezes uma música me remete a uma lembrança que anula o presente: fico imerso por alguns instantes numa realidade só minha, construída com fragmentos intransponíveis à razão. Pertencem a um tempo e lugar que variam sempre, como se brincassem com meus enganos. Fico a navegar entre destroços da memória, antes que a melodia finde e leve consigo todo o seu significado para longe outra vez. Como acordes e versos de uma poesia aleatória podem captar tanto sentimento, cristalizando na superfície uma lembrança que se desfaz em outra e assim seguindo até os abismos da certeza? Nunca sei bem como tal processo começou com cada uma delas. Se acaso um momento da vida tenha ficado retido, feito um instantâneo, na breve passagem do riff melódico sobreposto pelo clima criado pelo teclado e que orienta toda a canção, acabo cedendo à tentação de fugir desse estigma sonoro, mesmo sabendo que jamais ficarei longe de tal prisão imaginária. Uma parte de mim termina presa a outra pessoa, que de algum modo se converte na sua própria obra. É estranho. Você sabe que ela estava completamente longe de sua natureza quando no processo de criação, mas mesmo assim uma ponte foi construída entre os dois mundos, sendo o meu refletido do primeiro. Ma como... Distanciamos do mundo de forma tão igual, como uma aproximação por instinto. Quando vê, percebe apenas, ainda que em silêncio, que não se está mais sozinho. E todo o egoísmo não convence sobre a originalidade de seu discurso. Sim, ele é familiar a outrem. Sua dúvida, sua solução, seu erro, sua percepção da vida interior, está tudo lá. E quando o processo se formula num momento de contato dos subúrbios da alma, a mágica se faz de maneira indelével. Mesmo que se sinta desvendado, denunciado, desmontado, desnudado, o seu universo não irá se opor ao cruzamento de impressões intimistas, versões oculares ou ocultas de desejos que não se pronunciam, de planos que não se realizam, de divagações que não se pavimentam pela solidão da tarde em hesitação.
sábado, 23 de fevereiro de 2008
Rock Vs. Amor
Meus amores são bem rock and roll, ela diz. Eu só conheci seu lado bossa nova, respondo. Contraditório, ela comenta, mas verdadeiro. E como mais poderia ser? Fiquei curioso para saber como é do outro jeito... Mas, agora, não haveria como. Quem sabe um dia, gosto de pensar. Mas a vida é tão breve, e que se o dia chegue... Ela entorta e afirma adorar rock tanto quanto chocolate, flores, vinho e gatos. O animal? Sim, os gatos. De todos os tipos. E me adora também. Não necessariamente nessa ordem. Eu já ficava ofendido por gatos tomarem a minha frente, então depois fiquei mesmo foi perdido. Porque todos somos mapas. Um dia eu acompanhei o seu mapa até um ponto. Quando vi, ele se estendia para além da plataforma. Eu já estava com frio e com sono. Voltei pra casa por um outro percurso, que cobria quase um terço do tamanho original. Estava um pouco rasgado nas pontas. Não sei mais por onde começa. Nem ela responde. Desaparece sempre no momento mais crucial da conversa.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008
Too Much Rain
O frio oblíquo que aflige as janelas já tomou parte de meus pensamentos, lentas abstrações sobre a sujeira que acumulamos aqui dentro, sem percebermos. A chuva escoa com uma nitidez física, enquanto a dor e toda a raiva tardia se torna espectral. Amanhã terei um dia que não ajudará em nada. Será como limpar a faca depois do trabalho árduo: a lâmina reflete nossas mãos que guardam o cheiro por um longo tempo, lembrando-nos, insignificantes, dos cantos escuros da alma no corpo.
Forma
Neste lugar
amo longe
nas sombras do mangue
fogo em pleno ar
com graça
e fome
tuas mãos móveis como areia
formam concha e escondem
a libido sem nome.
amo longe
nas sombras do mangue
fogo em pleno ar
com graça
e fome
tuas mãos móveis como areia
formam concha e escondem
a libido sem nome.
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008
Try Again
A mesma rotina. Com as mesmas palavras. Para as mesmas pessoas. Onde me canso é minha revolta. Onde retardo é meu retorno. Como sempre, em todas as horas. Por que aqui as coisas caminham desse jeito? Que desolação. Ouço repetidas vezes a mesma música, perfurando meu ouvido. Talvez assim chegue à minha inconsciência e refaça, com notas, os planos que não encorajo. Numa tarde de inverno, cerraria as portas e pronto - jamais colocaria os pés novamente dentro de casa. Viajaria pelo mundo, com apenas uma mala na mão. Um caderno ao alcance, retratando a maldade, a beleza da maldade, a frieza da maldade, límpida e fresca como o sangue a jorrar de inúmeras cicatrizes. Os pés descalços sentindo a terra estrangeira. Pés que não pisariam mais na casa. Apenas o que houvesse do lado de fora. Seria vasta a paisagem, mais vasta que o espaço em que me ocupo. Com as mesmas pessoas. Na mesma rotina.
Retrato Em Preto-E-Branco
Com a fotografia nas mãos, me perguntava: o que revela esse olhar voltado para a lente da câmara, eternizado em preto-e-branco? Tudo ou quase nada? Talvez a pose ensaiada deixasse mais pistas, embora me fixasse nos lábios entreabertos. Vendo-a assim, serena, com uma passividade absurda, perco o fio da discórdia que tal sensação me oferece, ignorando os dez anos que se passou desde então. É um espaço de tempo paradoxal: quando a vejo, não percebo a sua passagem; como se as marcas físicas que se impõe a todos não a atingissem, apenas havendo o lastro da memória. Memória, diga-se, bastante vasta. Mas onde cada experiência se guarda ou se mostra é um mistério para mim. Conheci somente algumas, de relance, camufladas na linguagem usada e nas histórias que conta quando as lágrimas se tornam irreprimíveis. Os olhos, quando úmidos, dão um sentido de peso, de aniquilamento definitivo. Nessas horas, tento imaginar que força se imprime através deles, mantendo-os em expressão terminativa, de ultrapassagem de toda dor que se mantém oculta. Permanece à flor da pele por instantes, até que o viço fascinante de seu jeito se aninha nas dobras do corpo, me prendendo a atenção. Quantas coisas se perderam dentro do seu coração sincero, quantas se juntaram, se estenderam, se resgataram...? Dúvidas que a imagem estática de um retrato tirado há dez anos não responde. Sim, dez anos, e todas suas escolhas a trouxeram até aqui, instigante como uma paisagem, promovendo o que minha imaginação já perfez sobre a foto.
[Para Samara]
terça-feira, 19 de fevereiro de 2008
I Wake Up/It's A Long Time
O mundo me parece no mais completo silêncio agora. Ouço apenas minha própria respiração. As portas estão trancadas. Ninguém pode entrar. Mas olho de relance quando percebo com nitidez que me assusta a idéia de uma surdez repentina. Como saberia o real problema? De repente, desde o menor ruído se tornaria inexistente. Prendo a respiração. Não dói mais como antes. Quando acreditava tranquilo na ambivalência do amor. Certa vez, uma raiva marcada pelas tuas unhas na pele me deixou alguns minutos fora de transmissão. Seria absurdo: mas o ridículo em que me encontrava, com os olhos bem abertos, a boca como que a pronunciar uma palavra, mas com medo de como seria pronunciada. Fico atento ao menor sinal de que algo volte. Tuas unhas. Esse amor estranho. As sombras movendo-se pelos telhados e quintais. Agora sei, o silêncio é passageiro.
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008
The Blackwell Tunes - Covers # 5
If I only knew your name
I'd go from door to door
Searching all the crowded streets
For the place that I once saw
If I only knew your name
I'd go from door to door
Tell me have you seen the girl
I've met just once before
One Night of Love
Nothing more nothing less
One Night of Love
To put my head in a mess
Is that you on the bus?
Is that you on the train?
You wrote your number on my hand
And it came off in the rain
One Night of Love
Nothing more nothing less
One Night of Love
Has put my bed in a mess
Is that you on the bus?
Is that you on the train?
You wrote your number on my hand
And it came off in the rain
Young Love
Never seems to last
Far too young
Until they have a past
Playing games
People move so fast
You don't need eyes to see
If someones got a heart of glass
Young Love
Never seems to last
Far too young
Until they have a past
One night of love
Nothing more nothing less
One night of love
Has left my heart in a mess
I'd go from door to door
Searching all the crowded streets
For the place that I once saw
If I only knew your name
I'd go from door to door
Tell me have you seen the girl
I've met just once before
One Night of Love
Nothing more nothing less
One Night of Love
To put my head in a mess
Is that you on the bus?
Is that you on the train?
You wrote your number on my hand
And it came off in the rain
One Night of Love
Nothing more nothing less
One Night of Love
Has put my bed in a mess
Is that you on the bus?
Is that you on the train?
You wrote your number on my hand
And it came off in the rain
Young Love
Never seems to last
Far too young
Until they have a past
Playing games
People move so fast
You don't need eyes to see
If someones got a heart of glass
Young Love
Never seems to last
Far too young
Until they have a past
One night of love
Nothing more nothing less
One night of love
Has left my heart in a mess
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Mystery Jets,
The Blackwell Tunes
One Morning
Descia as escadas com sono, alheio ao dia encoberto pelas nuvens. 7 horas da manhã. Quando o celular tocou, quase não o percebi. Fiquei tenso com as notícias que imaginei. Mas quando atendi a sua voz acalmou tudo. Falando todas as bobagens que são importantes para nós, pude enxergar mais longe: essa outra vida, que carregamos no coração.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008
Going Nowhere
Onde uma rua se torna praça e mercado, onde os pássaros em gaiolas arrancam as próprias penas e os cachorros comem os restos de carne e ossos, onde o vendedor boceja enquanto escuta a conversa da cliente, onde os carros passam em marcha lenta, desviando dos pedestres.
A hora passa.
Outra rua, novos olhares, da loja de consertos entulhada com televisores antigos, da pastelaria cheia de trabalhadores calados, da igreja evangélica ocupada apenas por um pastor, da biblioteca munincipal, exalando o cheiro de mofo.
Quase noite.
No antigo cais da cidade, uma pizzaria com poucos clientes, um pequeno museu fechado, uma loja de artigos velhos e usados, uma sorveteria com alguns turistas, uma senhora oferecendo artesanato, o velho galpão, perto da nova sede comercial da cidade. Depois, o rio.
01:27 am
Começa a chuver quando bêbados passam em bando, fazendo algazarra. O gato pulando o muro testemunha o instante em que os namorados se despedem pela última vez. Quem estará aqui outra vez, amanhã quem sabe? Um barulho longínquo remota ao tempo.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008
A Chuva Cai No Pára-Brisa Do Carro Quando Estamos Longe de Casa
Bang, bang. Foi assim, com um impacto duro e seco. Eu olhei pelo retrovisor e de repente a porta se abriu. Com a maquiagem borrada ela sempre foi mais interessante. Ficamos em silêncio alguns minutos, antes de sair pelas ruas escutando os ruídos da madrugada, vendo a Lua feita-de-papel estampada no céu, num abuso insolente. Enquanto isso ela examinava as unhas, nervosa demais para pensar. O que se passava em sua tumultuada alma? Passional do seu jeito, me pediu para estacionar em qualquer lugar, e caminharmos um pouco. O que eu peço é só um pouco do seu calor pra mim, ela sussurrou quando já estávamos mais próximos, confidentes provisórios de nossas fraquezas expostas. Engraçado como a bebida faz você caminhar com passos calculados, comentei meio sorrindo. Foi o bastante para ela chorar baixinho com os braços me apertando o corpo, com medo talvez de simplesmente desaparecer sem deixar rastro. Com medo de virar poeira cósmica, perdida entre as estrelas. Sem ninguém que a ouvisse, sem promessas para cumprir.
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008
Yesterday Is Here
Passei o último quarto de hora lembrando de todas as pessoas ausentes. As que conheci e não lembro. As que se afastaram de alguma forma. As que simplesmente desapareceram. As que tomaram um caminho tão diferente do meu que se tornaram completamente desconhecidas. As que trazem dor só em lembrar. Pessoas: matéria indefinida. Como poderia falar delas? Como apresentar todo o amor e raiva e contestação e faz-de-conta. Que eu dissesse as verdades que vieram com cada uma delas, os enganos encontrados em cada coração. As imagens tão belas; de forma que qual seja o dia celebrado elas estarão aí, me dizendo o que fazer: cavar um poço bem fundo, onde enterre todas. Para que possam se apresentar novamente e recomeçar de outra maneira. O estômago, a alma, todo o resto, tecendo a fazenda imaginária das conversas vividas, dos sorrisos cúmplices, da estreiteza aguda imposta. As relações são duras, como pedras. Pedras a machucar a pele, alertando o corpo para os tempos vindouros: quando, quietos e vagos, nos aqueceremos na memória guardada para si.
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008
Before I Knew
Um tempo atrás
decifrei num delírio urbano
as causas esquecidas pelo frio:
A chuva forte apagava os rostos
deixando apenas desenhos marcados no chão.
Os elementos corporais de insatisfação
deitavam nos olhos absortos
reflexos amarrados pelo cais do rio
como um jeito de dor tão mundano
dos que ignoram solidão e paz.
decifrei num delírio urbano
as causas esquecidas pelo frio:
A chuva forte apagava os rostos
deixando apenas desenhos marcados no chão.
Os elementos corporais de insatisfação
deitavam nos olhos absortos
reflexos amarrados pelo cais do rio
como um jeito de dor tão mundano
dos que ignoram solidão e paz.
The Genius Of C. Kaufman [Part 2]
- Só espere. Eu não sei. Quero que espere... Um pouco.
- OK.
- Mesmo?
- Não sou um conceito, sou só uma garota ferrada procurando por paz de espírito. Não sou perfeita.
- Não vejo nada que não goste em você.
- Mas verá.
- Agora eu não vejo.
- Você vai achar coisas. E eu vou ficar entediada e me sentir presa, pois é isso que acontece comigo.
- Tudo bem.
- Tudo bem? Tudo bem! Tudo bem...
[Do filme Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças]
The Genius Of C. Kaufman [Part 1]
Melhor notícia do dia:
Publicado no site Omelete:
Sumido desde que escreveu o excelente roteiro de Brilho eterno de uma mente sem lembranças, em 2004, Charlie Kaufman está voltando em grande estilo. O roteirista de Quero ser John Malkovich e Adaptação estréia na direção em Synecdoche, New York.
Em junho do ano passado foi revelado o pôster, e agora sai a primeira - esquisitíssima - foto. Confira abaixo, na galeria.
O filme acompanha um diretor de teatro, interpretado por Philip Seymour Hoffman (Capote), que, após descobrir que tem problemas em uma visita ao dentista, decide empreender uma ambiciosa montagem: criar uma réplica de Nova York dentro de um galpão para uma peça teatral.
Synecdoche, New York - o título faz menção àquela figura de linguagem que estabelece relações de compreensão tomando a parte pelo todo, lembra? - tem ainda no elenco Michelle Williams, Catherine Keener, Samantha Morton e Tilda Swinton, todas mulheres que passam pela vida do personagem principal.
A premiére do filme deve ocorrer no Festival de Cannes deste ano, em maio.
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Então. Esperando este filme desde a divulgação do poster. Kaufman é gênio apreciado por aqui, a expectativa é grande pelo filme.
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008
I Like You [As You Like Me]
Nascida sob o signo de Áries, ela tinha o sorriso mais sensual que conheci na vida. Uma forma estranha de contrair o lábio superior, formando covinhas convidativas... Pensei logo que ninguém seria senão ela a pessoa mais legal que conheceria nos próximos meses. Não havia como fugir do destino. E assim foram os dias opacos do inverno agridoce que atravessamos juntos, uma jornada de muitas palavras. Manteria ela o seu diário ainda? Transformava nas páginas cada hora em linhas minúsculas em que cantava o próprio amor como algo encantado. Seria eu a edição limitada do seu disco preferido? Quando o silêncio constrangia meu estômago, ela sempre dizia "Estão tocando a nossa canção, baby". Um mundo paralelo com dois lagos foi construído dentro de cada um, perfazendo a distância real entre os corpos. Onde ela estará agora, metamorfoseada no pássaro solitário pousado na linha de transmissão elétrica?
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