domingo, 24 de fevereiro de 2008

Nos Subúrbios Da Alma

Muitas vezes uma música me remete a uma lembrança que anula o presente: fico imerso por alguns instantes numa realidade só minha, construída com fragmentos intransponíveis à razão. Pertencem a um tempo e lugar que variam sempre, como se brincassem com meus enganos. Fico a navegar entre destroços da memória, antes que a melodia finde e leve consigo todo o seu significado para longe outra vez. Como acordes e versos de uma poesia aleatória podem captar tanto sentimento, cristalizando na superfície uma lembrança que se desfaz em outra e assim seguindo até os abismos da certeza? Nunca sei bem como tal processo começou com cada uma delas. Se acaso um momento da vida tenha ficado retido, feito um instantâneo, na breve passagem do riff melódico sobreposto pelo clima criado pelo teclado e que orienta toda a canção, acabo cedendo à tentação de fugir desse estigma sonoro, mesmo sabendo que jamais ficarei longe de tal prisão imaginária. Uma parte de mim termina presa a outra pessoa, que de algum modo se converte na sua própria obra. É estranho. Você sabe que ela estava completamente longe de sua natureza quando no processo de criação, mas mesmo assim uma ponte foi construída entre os dois mundos, sendo o meu refletido do primeiro. Ma como... Distanciamos do mundo de forma tão igual, como uma aproximação por instinto. Quando vê, percebe apenas, ainda que em silêncio, que não se está mais sozinho. E todo o egoísmo não convence sobre a originalidade de seu discurso. Sim, ele é familiar a outrem. Sua dúvida, sua solução, seu erro, sua percepção da vida interior, está tudo lá. E quando o processo se formula num momento de contato dos subúrbios da alma, a mágica se faz de maneira indelével. Mesmo que se sinta desvendado, denunciado, desmontado, desnudado, o seu universo não irá se opor ao cruzamento de impressões intimistas, versões oculares ou ocultas de desejos que não se pronunciam, de planos que não se realizam, de divagações que não se pavimentam pela solidão da tarde em hesitação.

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